QUALQUER UM PODE FALAR QUE NÃO É PRECONCEITUOSO. MAS É O QUE VOCÊ FAZ QUE DIZ QUEM VOCÊ É
O sol brilha no playground infantil enquanto três crianças brincam juntas. Elas dividem com sincera alegria o escorregador, o balanço e a inocência da infância. São felizes porque têm a mesma idade, frequentam a mesma escola e compartilham as mesmas brincadeiras.
Lucas é um garoto esperto e brincalhão. Ana é enérgica e sincera. Gabriel, tímido e observador. Os três brincam juntos todos os dias no recreio do colégio.
Um dia, Lucas chega em casa e seu pai está bravo porque bateram no carro dele: “Só podia ser mulher! Mulher é muito burra. Toda mulher é barbeira, não sabe dirigir!”
Nesse mesmo dia, Ana passeia com sua mãe no shopping e elas veem uma mulher obesa tomando sorvete. “Tá vendo, filha! Não pode comer doce todo dia, senão você ficará uma baleia como aquela moça.”
Na casa de Gabriel, ele ouve atentamente seus pais conversarem. A mãe suspeita que a faxineira vem furtando comida da despensa. “Demita a mulher”, diz o pai de Gabriel. “Não confio em pretos. Vê se agora arruma uma faxineira branca.”
Há uma passagem do livro “O Sol é Para Todos”, de Harper Lee, que ilustra o preconceito seletivo de algumas pessoas. A menina Scout ficou incomodada com algo que nenhum adulto pôde lhe explicar: por que, para a sociedade americana do Sul dos Estados Unidos, na década de 1930, era errado Hitler perseguir os judeus enquanto era normal o racismo contra os negros? “A perseguição acontece em países onde há preconceito”, explicou a professora, na escola, em relação à ditadura que ocorria na Alemanha. Entretanto, essa mesma professora achava um absurdo brancos se casarem com negros.
Lucas é negro. Ana é menina. Gabriel é gordinho.
Quando se encontram novamente no playground, tudo continua igual: o sol brilha no céu, o escorregador e o balanço permanecem no mesmo lugar. Porém, em seus corações de criança, há o peso das palavras carregadas de ódio de seus pais. Lucas, que sempre achou Ana diferente das outras meninas porque ela sobe nas árvores com ele, lembrou-se de quando seu pai lhe disse que toda mulher é burra. Ana, que sempre gostou quando Gabriel traz balas na lancheira, queria dizer-lhe que ele ficará uma baleia se não parar de comer doces. Gabriel, que gosta das brincadeiras malucas que o Lucas inventa, ficou desconfiado porque seu pai falou que não se pode confiar em negros.
Hoje eles brincam ressabiados. Um olha para o outro com sentimentos divididos entre a ternura natural e o preconceito adquirido. O sol, até então sempre cálido e vivo, agora está sobre a sombra da ignorância.
Os sentimentos que cercam essas crianças não vieram delas. São os adultos que deveriam lhes ensinar o que é empatia, respeito ao próximo e tolerância. Entretanto, nossa sociedade ainda está atrasada no que se refere ao amadurecimento e acolhimento das diferenças. Ainda nos deparamos com pessoas que são seletivas em seus preconceitos.
Talvez essa seletividade seja a escuridão de quem não reconhece que somos seres humanos apesar de nossas diferenças e não entende que, mesmo diferentes, somos todos iguais.
Para o sol brilhar para todos, é preciso ter coragem de admitir que o preconceito que eu sofri não justifica o meu próprio preconceito. Como escreveu Harper Lee, “coragem é fazer uma coisa mesmo estando derrotado antes de começar, e mesmo assim ir até o fim, apesar de tudo”.
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